Sobre o Aborto*
Art.5º
da CF: Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade nos
termos seguintes:
I
- homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações,
nos termos desta Constituição;
...mas somente em teoria. Este trecho está
implícito. A prática obedece a padrões da
sociedade paternalista em que vivemos. Para falar sobre o aborto é
preciso primeiro definir o que seria o aborto em linguagem
acessível. A palavra
aborto vem do latim ab-ortus,
que, por sua vez, deriva do termo aborior. Este conceito é
usado para fazer referência ao oposto de orior,
isto é, o contrário de nascer. Como tal, o aborto é
a interrupção do desenvolvimento do feto durante a
gravidez.
Trataremos neste post somente sobre o "aborto provocado", ou seja,
aquele em que o feto é intencionalmente retirado,
desconsiderando para esta discussão outros tipos de
abortos como: o natural ou espontâneo,ou aquele realizado em
casos de estupro ou de bebês anencéfalos, como
recente e efervescente debate do STF.
Observo
que, talvez, com a apresentação de indicadores em
escala nacional, poderíamos conseguir maior efetividade no
objetivo a que esta discussão se propõe, que é o
de trazer novas nuances sobre o tema da descriminalização
do aborto, ensejando uma discussão acadêmica e
reflexiva. No entanto, o fato de ser uma mulher falando sobre o
aborto, num país em desenvolvimento, de uma região
periférica, em uma cidade periférica e de um bairro
periférico poderia suscitar dúvidas sobre minhas reais
intenções com este discurso, assim como fazer pairar
nuvens de desconfiança em qualquer mulher que levante a
bandeira. Isso, fruto de conceitos machistas e retrógrados
intrínsecos ainda em nossa educação. Contudo, a
leitura deste post deve ser feita de maneira desarmada, pois os
conceitos a que estamos expostos e habituados desde a infância
diferem significativamente da ideia que virei a apresentar-lhe neste
post.O
diálogo propoem-se a justificar a ideia de como o Direito tem
sido utilizado contra as mulheres e pautado historicamente numa lógica de
dominância masculina, que apesar de vir sendo combatida arduamente, ainda é predominante em nosso país.
No
Brasil as altas taxas de aborto e mortes maternas dele decorrentes
são conseqüências da dificuldade de acesso à
assistência básica de saúde, em especial ao
Planejamento Familiar.E servem de indicador de falência do
nosso sistema de saúde, pois não raro encontram-se
mulheres com complicações e correndo risco de vida por
conta de abortos mal praticados em clínicas clandestinas.
O
número de mortes decorrentes de complicações do
aborto está diretamente relacionado à qualidade técnica
empregada para produzi-lo. Isto porque uma vez que a lei o proíbe,
em geral os procedimentos são feitos clandestinamente e em
condições absurdamente precárias.
Os
métodos abortivos podem ser os mais variados: químicos,
medicamentosos, por indução, físicos, cirúrgicos
e psíquicos. A variedade de formas buscada para a prática
do aborto aumenta os riscos à integridade física e
psicológica da gestante além de poder determinar sua
morte de forma direta ou não, imediata ou não. As
principais complicações são perfuração
uterina e de outros órgãos, formação de
aderências, esterilidade, infecção, sepses,
hemorragias, coagulopatias, intoxicação hídrica,
parada cardíaca por reflexo vagal (morte por inibição),
embolia aérea e óbito.( LEOPOLDO E SILVA,2008,sn).
Nesse
sentido, ALVARENGA e SCHOR (1994 apud FERREIRA, 2010) nos
mostra que prática do aborto foi tema de discussão em
diversas sociedades, até mesmo no “berço da
civilização ocidental” e para os filósofos do
cristianismo. Na antiga Grécia, Aristóteles e
Platão já discorriam sobre o assunto; na Roma antiga o
aborto era intimamente ligado à taxa de natalidade,
podendo ser proibido ou permitido, e tomado como assunto de Estado;
durante a Idade Média, dois pensadores do cristianismo
refletem sobre o tema: Sto. Agostinho (sec. IV) admite que só
a partir de 40 dias após a fecundação se pode
falar em pessoa e Santo Tomás de Aquino (séc. XIII)
reafirma não reconhecer como humano o embrião que ainda
não completou 40 dias, quando então lhe é
infundida a "alma racional"
Somente
nas mulheres pode ocorrer uma gestação, bem como
somente nelas pode ocorrer o aborto,e acredito que aí reside subjetivamente a justificativa pelo fato da prática ser tão arduamente combatida. Ardaillon discorre sobre isso alegando que:
“Por
seu corpo reprodutor, porém, o corpo da mulher não faz
jus a privacidade e à autonomia. O ventre feminino foi
controlado desde sempre, e em todas as sociedades. O direito de
abortar parece simbolizar a extrema subversão que
representa, na nossa sociedade, a autonomia de um indivíduo
feminino sobre o processo de reprodução”.
(ARDAILLON, 1994, p. 215).
A
autora deste texto, trabalhando no campo da conjectura, acredita que
se o ato de gerar e parir uma outra vida fosse um privilégio
mútuo de homens e mulheres ou exclusivamente masculino, é
provável que jurista e legisladores, essencialmente homens, não
permitissem que terceiros lhe dissessem o que fazer com seu corpo, e
a questão do aborto, hoje ainda tema tão polêmico,
já houvesse sido descriminalizado quiçá meados
de do século passado ou talvez nunca houvesse chegado
a ser crime. Voltando a realidade, onde este é um papel da
mulher, o código penal
disciplina a matéria nos seguintes termos:
Art
124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe
provoque:
Pena:
detenção, de um a três anos.
Art.
125. Provocar aborto, sem o consentimento da gestante
Pena:
reclusão, de três a dez anos.
Art.126.
Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena:
reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo
único: Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não
é
maior
de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental,
ou se o consentimento é
obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.
Art.
127. (Aborto Qualificado) As penas cominadas nos dois artigos
anteriores
são
aumentadas de um terço, se, em conseqüência do
aborto ou dos meios
empregados
para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de
natureza grave;
e
são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém
a morte.
Art.
128. Não se pune o aborto praticado por médico:
I
– se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II
– se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento
da
gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Observe
que o Código Penal apesar de ter sofridos profundas
modificações em meados de 2010 em vários
artigos, neste aspecto ainda conserva o mesmo texto do código
de 1940, sem ter sofrido nenhuma alteração. Dito isto,
ressalta-se que o código usa os termos “provocar ou
consentir aborto” para tipificar a conduta. O que, subjetivamente
atribui a responsabilidade do ato, quase que exclusivamente à
mulher. Ao sujeito homem só estenderá a pena se este
tornar-se co-autor quando, e se, flagrado com esta mulher no lócus
do crime, ou seja, no momento do aborto, ou provando que este lhe deu
deliberadamente algum auxílio financeiro para este fim.
Contudo, mulheres que praticam aborto, muitas vezes, vão às
estes locais ou clínicas, desacompanhadas e sem nenhum auxílio
por parte do parceiro, o que inclusive, utilizam como argumento para
justificar sua conduta: falta de apoio do parceiro, seja no aspecto
emocional, financeiro ou pela simples presença física.
Assim, a única que pode passar pelo período
gestacional, é a única que também pode abortar,
e em geral e sua maciça maioria, é a unica a ter sua
conduta tipificada como crime: a mulher. Não existe na lei penal, nenhum
artigo que atribua claramente alguma responsabilidade ao homem, pai
desta criança como participante deste processo. O que
demonstra ambiguidade e contradições na intenção
dos legisladores.
Remeto
a um caso recentemente divulgado na mídia e já
discutido em um post anterior sobre a conduta do Deputado
Federal Jordy (PPS/PA) que é flagrado em um grampo telefônico tentando convencer uma mulher a praticar o
aborto (http://www.youtube.com/watch?v=-cQam-IUoS4
).
Ele alega na gravação que: se ela “escolher ter um
filho, arcará com as despesas sozinha pois ele não se
responsabilizará por espontânea vontade.” A conduta do
deputado apesar de amoral não é tipificada como crime.
Pois na lei não há nenhuma artigo que trate sobre
induzir, pressionar ou coagir uma gestante a
praticar crime de aborto, mesmo que este homem em questão,
seja o pai da criança.
A
mulher responde sozinha pelo ato, independente da conduta do pai ter
sido ativa ou omissiva. Sua obrigação de prestar contas
à sociedade e aos ditos valores morais, recaem pesadamente à
quem é flagrada cometendo este crime. Então
pergunta-se: acaso o fruto da gravidez ocorreu por partenogênese?
Este mulher fecundou-se sozinha? Qual a participação,
de fato, do homem para que ocorra uma gravidez? Isto é
responsabilidade exclusiva da mulher?
Se
uma gravidez indesejada ocorre, pode-se imaginar os mais variados motivos pra isso, que podem ir desde desinformação a
descuido. Mas a quem deve ser atribuída esta responsabilidade?
A princípio, em moldes tradicionais, consideraremos para fins deste debate, de que seja necessária a participação
de UMA MULHER E UM HOMEM para gerar uma terceira vida. Ora, que se é
necessário a participação (e talvez
irresponsabilidade) de duas pessoas de sexo opostos para que uma
gravidez ocorra, porque somente a mulher deveria responder criminalmente por esta vida? Contradiz o que nos mostra o artigo 5º da
constituição conforme exposto no início deste
post sobre suposta igualdade de direitos e deveres.
Neste sentindo, vejo somente duas medidas que podem ser adotadas para tentar
legitimar direitos e deveres iguais ou diminuir estas diferenças, sob o aspecto aqui discutido, e as ambas perpassariam por alteração
do Código Penal:
1º)
Responsabilização criminal do CASAL ( homem e mulher) pela
prática do aborto, ou
2º)
Descriminalização do Aborto.
Há
que se reconhecer que este tema é muito controverso e que sua
discussão sempre causa polêmica, em que há mais
de 20 anos se discutem mudanças na legislação
punitiva, mas que não há avanço efetivo no que
diz respeito ao direito das mulheres sobre o seu próprio
corpo, problematizado ainda por não haver um consenso social
quando se trata de um assunto tão delicado quanto o aborto.
REFERÊNCIAS:
ARDAILLON,
Danielle. Aborto no judiciário: Uma lei que justiça a
vítima. In: BRUSCHINI, Cristina e SORJ, Bila (orgs.).
Novos olhares: Mulheres e relações de gênero no
Brasil. São Paulo:Fundação Carlos Chagas e
Editora Marco Zero, 1994.
BARSTED,
Leila Linhares.O MOVIMENTO FEMINISTA E A DESCRIMINALIZAÇÃO
DO ABORTO. In: Estudos Feministas. 2/ 97. Ano 5. 1997. Disponível
em: http://educa.fcc.org.br/pdf/ref/v05n02/v05n02a11.pdf
BRASIL. Código
Penal.
Colaboração de Antonio L. de Toledo Pinto, Márcia
V. dos Santos Wíndt e Lívia. Céspedes. 39. ed.
São Paulo: Saraiva 2001, 794.p.
________.
Constituição (1988). CONSTITUIÇÃO DA
REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Senado, Brasília, DF, 5º
ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
FERREIRA,
Emilia Julian. ABORTO, UMA QUESTÃO LEGAL. ANÁLISE DAS
LEGISLAÇÕES PERTINENTES DE BRASIL, ARGENTINA,
URUGUAI E PARAGUAI. IN:Diásporas, Diversidades,
Deslocamentos(Revista).SC: Universidade Federal de Santa
Catarina. 2010.
LEOPOLDO E SILVA , Fernando Duarte .FUNDAMENTOS MÉDICOS E JURÍDICOS DO ATENDIMENTO AO ABORTO. Monografia apresentada ao Especialização em Direito Médico.Páginas não enumeradas. São Paulo.2008. Disponível em: http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=1201.
* A blogueira e autora deste texto é graduada em Administração pela Universidade Federal do Pará, com mestrado em Planejamento do Desenvolvimento pela Núcleo de Altos Estudos da Amazônia/UFPA, especialista em Educação de Adultos pela Universidade do Estado do Pará, Ativista-participante do Movimento Feminista de Belém e técnica de nível superior na Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social do Estado do Pará.
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