Trechos de uma vida desregrada...


Estávamos todos sentados a mesa. O que eu fazia num encontro as escuras? Como pude deixar levar-me por tamanha tolice? Eu estava evidentemente constrangida com a situação, mas depois de tanto tempo solteira eu precisava sair daquele estado de inércia, procurava convencer a mim mesma de que tudo aquilo era absolutamente normal e parecer muito tranquila, dona de mim e da situação. Estava ansiosa por conhece-lo, foi por indicação de um amigo. Claro, claro que olhei nas redes sociais. Certifiquei-me de que era ao menos bonito, já que eu não sabia se era um psicopata, um louco ou um maníaco. Ele foi o último a chegar, o que não me causou boa impressão. Homens que se atrasam num primeiro encontro demonstram desinteresse e descompromisso. Será que ele também viu minha foto e não gostou? A minha roupa está adequada para a situação? Será que estou muito formal? Eu sabia que deveria ter vindo com aquela blusa decotada, talvez um batom mais vermelho para parecer mais madura. Esses cachos no cabelo as vezes me dão aparência infanto-juvenil. Droga...Tá bom, calma, calma, respira...vai ver ele nem notou aquela espinha no canto do rosto. Ela tinha que nascer justo hoje?! Droga, será que a maquiagem está cobrindo bem? Não sei me maquiar, devia ter pedido ajuda a uma amiga. Pedi uma batida de morango. Rezei para que o garçom exagerasse na vodka. Eu precisa descontrair, abrir um sorriso, puxar um assunto...sei lá. Coisas que o álcool  ajuda a fazer neste momentos. Minha preces foram atendidas, mas logo notei que seria desnecessário. Ele tinha fala fácil, emendava assuntos, sorria e gesticulava bastante. A moça ao lado fitava-o com curiosidade e certo interesse. Corei. Será que ele gostou de mim? Será que ele gostou mais dela? Ela é mais bonita que eu e o decote dela é mais ousado. Eu sabia que deveria ter vindo com aquela outra blusa. Droga! Agora é tarde. Pedimos a conta. Como uma mulher beirando os 30 e com namoros de longo prazo no curriculum, sei o que esperar e o que não esperar de um homem, principalmente depois de alguns anos de relação ou em um primeiro encontro. Puxo a carteira. Não apenas para fazer menção ou demonstrar mera intenção de pagar, mas já chamando o garçom para separar o meu consumo dos demais. Ele segura minha mão bruscamente e me fita com certa rigidez. Chama, ele próprio, o garçom. Eu discretamente, tomando o cuidado para não parecer arrogante ou muita masculina, permiti então que ele tomasse a frente da situação (talvez ele fosse um desses homens machistas que gostam de parecer no controle, pensei). Então discretamente tiro o dinheiro da carteira e passo a ele por debaixo da mesa. Ele novamente me fita com um olhar sério, ríspido para logo depois abrir um largo sorriso, e então se dirigindo aos demais da mesa, anuncia que naquela noite apenas os homens pagariam a conta. Não foi difícil notar como o acompanhante de minha amiga ficou contrariado com a situação. Mas não reclamou. Também não precisava, estava explícito no seu rosto sua indignação em pagar a conta pelo que não consumiu. Insisti para ele ainda com o dinheiro em mãos. Expliquei que já havia consumido antes da chegada dele. Ele não estaria sendo gentil, estaria sendo idiota em pagar a conta para uma mulher que mal conhece. Pensei:  "isso deve ser apenas charme, talvez querendo se destacar na mesa". Então, ele fará o que os homens normalmente fazem: "Já que você insiste então pode pagar....".E aceita o meu dinheiro sem nenhum constrangimento e vamos embora. Imaginei as palavras saindo da sua boca. Imaginei a cena. Imaginei o que ele esperava com isso. Já acontecera outras vezes. Não seria surpresa. Voltei a insistir com o dinheiro em mãos. Mas como ele se recusou veemente, e o garçom já trazia o troco, então apenas empurrei uma certa quantia pelo bolso de sua calça, longe da vista de curiosos. Novamente aquele olhar duro, mas desta vez seguido de uma certa ternura. Ele toma a bolsa do meu colo e apenas coloca o dinheiro novamente, e já de pé, inclina-se e sussurra algo que somente eu ouvi e foram as palavras mais lindas e românticas que alguém (e ali ele ainda me era um estranho) já me disse: "Não quero que você se preocupe com nada esta noite". Foi o bastante. Apenas com essa frase eu percebi que gostaria de casar com este homem, ter filhos com ele e passar o resto da vida tomando conta dele, lavando suas roupas e até entregando todo meu salário a ele (que não era lá grande coisa).
Percebi que era o tipo perfeito de homem que eu queria pra mim, não por ter pagado a  conta, não por ser bonito e falante, não por eu ser uma desleixada ou despreocupada louca para que outros assumam minhas responsabilidades. Muito pelo contrário. Por ser tensa, ansiosa, nervosa e sempre tomando até responsabilidade alheia, muitas vezes sofrendo por antecipação, deixando de dormir e até de comer, o que já me rendeu uma dolorosa gastrite e uma insistente e incômoda insônia. Ele não seria o tipo de parceiro que traz problemas. Ele traz soluções. Toma a frente das situações por gostar, e não por ser coagido com a pressão da situação ou obrigado a assumir as rédeas. Diferente de mim. 
Mas logo vi: ele era livre demais pra ser meu. Pra ser só meu. Eu fiz tudo errado. Então notei que que ele jamais olharia pra mim de outra forma, eu não tenho as qualidades que ele precisa, pelo menos não mais para uma noite. Não me arrependo. Pois em muitos anos, em uma década talvez, ele me fez sentir uma adolescente novamente, onde eu poderia relaxar e simplesmente deixar a vida acontecer. Sem preocupações ou cobranças típicas da vida adulta, sem rótulos, eu poderia naquele momento ser irresponsável porque sabia que ele seria o adulto da situação. Isso aconteceu há dois anos. Consolei-me dizendo "quem sabe um dia" e segui meu caminho com outros homens que não se importavam tanto assim com minha preocupação ou a falta dela. Afinal a vida continua, e a minha insônia e gastrite também, que a propósito, estão me incomodando bastante hoje...E este é motivo deste post escrito pela madrugada adentro.  

Comentários

Postagens mais visitadas